terça-feira, 21 de junho de 2011

Aos velhotes dos dias de hoje



Há dias, estive a ver retratos de rua numa revista de fotografia que comprei por acaso, quando descia a Humberto Delgado depois de um exame demasiado aborrecido.
Uma das fotografias tinha uma qualidade expressiva superior a qualquer outra que já me tenha passado pelas mãos. Era só um velhote – e não me sirvo deste termo com conotação ofensiva – nas ruas sujas do Porto. Mas o contraste intenso das rugas na pele já escurecida transmitia mesmo alguma coisa. Nesse exacto momento, na minha cabeça ecoou a voz do Johnny Cash, numas palavras que nem lhe pertencem realmente. Era a música Hurt dos Nine Inch Nails que contava a história daquele homem, no timbre cinzento e profundo do Sr. Cash.
Isto fez-me pensar noutra coisa que ouvi esta semana numa entrevista. Não me lembro das palavras exactas, mas era algo deste género: “Não sei porque tanto querem prolongar a vida aos velhos, para nos abandonarem sozinhos e sem condições de vida. Deixem-nos morrer!”. Será que todos chegamos a velhos a pensar assim? Verdade seja dita, as estatísticas assustam no que toca à quantidade de idosos que vivem sós, sem recursos económicos, sem condições básicas, sem família, ou com família que simplesmente não quer saber. Dói pensar no quanto estas pessoas anseiam por uns minutos de atenção, nem que seja numa conversa sobre o tempo. Talvez haja aqueles a quem a sorte bate à porta. Talvez haja aqueles capazes de construir um império de felicidade ao invés do empire of dirt que tão bem pronuncia Johnny Cash. Eu não sei.
Pensei falar disto à minha avó, um grande pedaço do meu mundo. Mas acho que ela não me responderia. São raras as vezes em que lhe oiço uma gargalhada sonora, são demasiadas as vezes que a oiço queixar-se dos ossos a subir as escadas. O mundo avançou demais e a idade não lhe permitiu acompanhá-lo. Passa os dias de um lado para o outro, ao ar livre, porque diz que parar é morrer. Eu sei que na verdade só o faz para libertar o pensamento da dor, já perdi a conta à quantidade de vezes que me ensinou que “este mundo são dois dias de sofrimento”.
Até achava que a vida dela era relativamente afortunada, pelos menos agora. Tem a filha ao lado dela, tem os netos quase todos por perto… Mas, pensando bem, os velhotes merecem o mundo aos seus pés e, no entanto, só costumam ter arcas de roupa velha e mágoa em tudo quanto é canto.
A minha avó não consegue esticar as mãos, tem os pés deformados então não pode variar muito no calçado, tem glaucoma, hipertensão, diabetes e um problema auditivo que lhe causa um ruído constante dentro da cabeça. São poucas as pessoas que têm paciência para repetir as coisas umas três vezes até ela entender – eu própria não tenho paciência todos os dias – e toma uns cinco medicamentos diferentes a cada refeição.
A minha avó já não pode ouvir as tão adoradas cassetes da Amália e costuma ficar constrangida quando à terceira ainda não percebeu o que lhe estão a tentar explicar, então desiste e acena afirmativamente. E, quando se fala em morte, diz que antes gostava de me ver “formada”. Depois, pode seguir o caminho dela, seja ele qual for.
Não custa nada ceder o lugar no autocarro, explicar o funcionamento dos euros, ouvir mil vezes a mesma história, apanhar alguma coisa que lhes caiu ao chão, ajudá-los a levantar-se, a atravessar a rua, sei lá… Não digo isto a pensar que também serei velha, digo-o porque gostava que alguém o fizesse pela minha avó.
Será que vale a pena trabalhar uma vida inteira só para um dia sermos velhos? Acho que vale, se nos tornarmos “o velhote” de alguém.

A minha velhota

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